Esta música do Caetano, Autoacalanto, é muito linda. Está em um disco recente dele, Meu coco, lançado quando ele beirava os oitenta. É o Caetano contemplando o balbucio do neto, Benjamin, e notando que de algum modo o som faz as vezes de um acalanto, como se o bebê estivesse ninando a si próprio. Na letra, a pergunta “o que é mesmo que isso me ensina?” faz meus olhos encherem de água. É porque sou fascinado com a perpetuação da vida por meio da pulsão de vida. E pulsão de vida para mim é a sustentação máxima da curiosidade, ou, dizendo de outro modo, é estar receptivo às frestas de encantamento que o mundo sempre pode oferecer.
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A capacidade de encontrar algo com que me emocionar da forma como me emocionei com a música do Caetano é a única coisa que peço aos céus. No meu caso ao menos é infelizmente a primeira característica que perco ou quando estou mentalmente muito instável ou quando estou tomando dose alta de remédio. Gosto dos termos em inglês para isso: flatness. O tal embotamento, a ausência de emoção ou a incapacidade de se emocionar. O cansaço. A anedonia.
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Na série documental McCartney 3,2,1, Paul e o produtor Rick Rubin conversam sobre vida e música em frente a uma mesa de som. Está tocando While my guitar gently weeps. Rubin, como nas outras canções do episódio, isola o baixo de Paul. Ambos se surpreendem com a agressividade da linha escolhida, díspar da linha principal de guitarra a ponto de soar como o baixo de outra canção. Paul fica mesmerizado com a própria virtude, fruto do impulso criativo de muitas décadas atrás. A capacidade de Paul de vibrar com a própria obra a esta altura da vida é análoga à celebração de Caetano com o neto ensaiando a fala enquanto na verdade, na verdade, grunhe.
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Mesmerizar tinha tudo para ser um anglicismo, mas a etimologia é mais interessante. É um antropônimo de Franz Anton Mesmer, médico austríaco que inventou o mesmerismo, corrente médico-filosófica que aplicava o “magnetismo animal”, a energia entre corpos, para curar doenças e decifrar fenômenos. Hegel e Schopenhauer tratam a sério de mesmerismo em suas obras, misturando a consciência, o sistema psíquico, o sistema linfático com a capacidade magnética de se deixar enfeitiçar.
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Sou mesmerizado por canhotos como Paul. Sou canhoto e, se há gente que fala de trás para a frente, se há o dom do Curry e o do Poatan, o meu dom é rastrear em tempo real todos os canhotos do mundo. Percebo num frame de filme o ator canhoto. Já descobri canhotos pelo forma de andar. Se fosse escrever um livro de curiosidades, aqueles livros-inventário do Bill Bryson (Breve história de quase tudo), escreveria um livro sobre os canhotos. O neurocientista Chris Mcmanus, que escreveu um livro sobre o tema, chama-nos de “a última grande minoria negligenciada”, pois o mundo não percebe quão pouco convidativo é aos esquerdos. O mundo dos homens é quiral, é assimétrico, as mãos se espelham, não se sobrepõem, as luvas não se calçam, nem os sapatos.
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No entanto dentro de nós as moléculas dos aminoácidos são todas espelhadas para a esquerda; os açúcares, para a direita. Muitos compostos químicos escolhem o seu lado e nele se estabelecem para sempre, como os canhotos, os destros, os ambidestros, o Caetano e o Paul aos oitenta.
Tudo são certezas de mistérios.
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Eu gostaria de que meus olhos todos os dias se enchessem de lágrimas de emoção por um mundo cintilante e atômico, tão real quanto mesmerizante, tão assimétrico como os nossos corações, tão decidido como os nossos aminoácidos.
Nunca lágrimas de tristeza, ou ansiedade, ou insipidez.
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